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Temas, tamanhos e materiais variaram ao longo de muitas décadas, mas nada substitui a criatividade do folião. Veja transformações das fantasias e roupas do carnaval de rua do Rio
O trecho da marchinha “Máscara Negra”, de Zé Keti e Pereira Matos, que fala que “o arlequim está chorando pelo amor da colombina” revela muito mais do que a história do flerte entre dois mascarados no carnaval.
Muitas das fantasias que foram ou são tendências no carnaval do Rio percorreram um longo caminho até chegar aos bailes e ruas da cidade. A história delas explica também parte da história da festa.
Compilação de fotos de fantasias de ranchos publicada em 1922 pelo jornal ‘O Malho’
Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil
O g1 pesquisou e conversou com especialistas para contar um pouco sobre as transformções das fantasias no carnaval – temas, materiais e até tamanhos.
Século 19
Os primeiros registros do carnaval no Brasil eram de uma festa importada de Portugal. Tratava-se de um conjunto de brincadeiras conhecidas como entrudo – muitas delas envolvendo o ato de pregar peças, a mais famosa era uma espécie de guerrinha de líquidos e “limões de cheiro” (projéteis feitos de cera, água e outros líqudos).
Uma das brincadeiras mais conhecidas do entrudo era jogar água nas pessoas que passavam pelas ruas
Arquivo Nirez/Reprodução
Logo, o carnaval no Brasil passou a sofrer influência da cultura dos africanos trazidos para o Brasil como escravizados e de outros povos. Da época em que o entrudo passou das casas para as ruas começaram a se popularizar máscaras para esconder alguns dos autores das gozações.
Entre as muitas máscaras que passaram a ser usadas estavam grandes cabeças improvisadas imitando velhos – em 1823, o pintor francês Jean-Baptiste Debret já observava que essas fantasias eram usadas por grupos de negros para imitar gestos e danças de velhos europeus.
O entrudo e as máscaras foram alvo durante anos de campanhas na imprensa da época os associando-os a um carnaval mais “primitivo” e sofreram várias proibições – que quase nunca davam certo.
Na metade do século 19, fim do Império, segundo historiadores como Luis Felipe Ferreira, houve uma tentativa de importar tendências do carnaval francês para o Rio, tido por alguns grupos como mais “civilizado”. Outros países como a Itália também eram inspiração – o carnaval veneziano foi tema de alguns dos primeiros bailes organizados na época no Rio.
Grupo de pierrôs, em foto publicada pelo jornal ‘Careta’, em 1919
Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil
É dessa época que foram importadas para o Rio as fantasias do movimento de teatro conhecido como commedia della arte, como pierrô, colombina e arlequim.
Nessa época, o costume de se fantasiar ainda estava sendo popularizado no carnaval , então, olhando fotos de desfiles de sociedades e blocos, é possível ver muitos homens de paletó, terno e chapéu entre os foliões – até em maior quantidade do que os fantasiados.
“Muitos saíam dos seus trabalhos ou voltavam pra eles depois dos blocos.E existia o costume dos homens saírem de paletó e chapéu. Era quase uma regra para andar na rua”, explica a figurinista Carol Lobato, mestranda em design na Escola de Belas Artes da UFRJ, que tem o carnaval como um de seus temas de estudo.
Foto mostra menina fantasiada em 1924
Arquivo Pessoal/Rafael Cosme
Outra fantasia popular na época era a de diabinho. Em jornais do início do século XX, foram publicadas charges e associações racistas desse tipo de fantasia com escravizados e ex-escravizados.
Temas como espanhola, cigana e marinheiro – e outras variações – também estavam entre as fantasias populares do Rio entre o fim do século 19 e as primeiras décadas do 20 como mostram fotos descobertas pelo pesquisador Rafael Cosme.
Homens de paletó ao lado de outros foliões fantasiados na Avenida Rio Branco, entre eles vestidos de mulher em foto de 1916 do jornal ‘Careta’
Acervo da Fundação Biblioteca Nacional – Brasil
Influência de ranchos e concursos
Também nas primeiras décadas do século 20 grupos conhecidos como sociedades, ranchos e cordões – que influenciariam blocos e escolas de samba como conhecemos hoje – se tornaram muito populares e atraíam multidões em vários bairros do Rio, sobretudo no Centro.
Esses grupos, sobretudo os ranchos, que já desfilavam com um tema – o embrião dos enredos de escolas de samba – também ajudaram a diversificar as fantasias no carnaval do Rio – tanto nas inspirações quanto nos materiais das indumentárias.
Já as sociedades, que eram grupos ligados a elite, contavam com cenógrafos e figurinistas contratados, que trabalhavam para o teatro de revista.
Roupas de outras culturas passaram a ser mais usadas com ornamentos mais elaborados (veja a primeira foto abaixo do vídeo no início da reportagem, com uma compilação de foliãs de ranchos).
A partir dos anos 40 é possível ver que, gradativamente, roupas de mulheres e homens que participavam do carnaval de rua vão ficando menores ou mais justas ao corpo – é cada vez mais dificil ver em fotos e vídeos da época os outrora onipresentes paletós e, mesmo entre as fantasias, os tecidos já não eram mais tão folgados.
Álbum do “Grupo do Chaveco da Praça Onze” nos anos 40 no Centro do Rio
Arquivo Pessoal/Rafael Cosme
No fim dos anos 50 e a partir dos anos 60, já é possível ver com mais frequência, além de homens sem camisa, roupas do tamanho de roupas de banho.
Imagens históricas do bloco Bafo da Onça dos anos 50 e 60, do Catumbi, Região Central do Rio, é possível ver foliãs que participavam de apresentações e concursos com biquínis e as que saíam no chão de shorts e camisetas.
Nas décadas seguintes, a liberdade de escolher fantasias menores se consolidou e, chegando aos anos 2000, é possível ver não só homens, mas também mulheres sem camisa.
“Hoje, os homens, as mulheres têm essa liberdade. Além dos efeitos do aquecimento global nessas escolhas, passou a se valorizar a liberdade do corpo que a gente tem. O “não é não”, o corpo político que vem pra rua e o nu como política da liberdade, empoderamento do corpo”, lembra Lobato.
Bafo da Onça é um blocos pioneiros no carnaval de rua do Rio de Janeiro
Arquivo do Bafo da Onça
A figurinista também observa como tendência para o carnaval atual a influência da moda nas escolhas atuais para as fantasias no carnaval de rua, além de uma maior variedade de materiais.
Ela lembra que itens como plumas de animais já foram vistas como símbolo de status nos primeiros anos de carnaval e hoje podem ser substituídos – não só por questão de custo, mas por opção ecológica.
“Hoje, com a tecnologia e tecidos que vêm de fora, como os chineses, tudo está mais acessível. E isso traz uma diversidade muito grande, não só para os blocos e para as escolas [de samba]”, diz
“Hoje nos blocos, existe muito a influência da moda nas fantasias e ela vem com brilho, itens de led. Você vê muito brilho até de dia, coisa que antigamente era abominada. Isso é muito interessante, mas o que sinto falta é de trazer mais pro Centro do Rio coisas que vemos no carnaval que se perpetua no interior e na Zona Norte: bate-bolas, concurso de fantasia, mascarados”, opina.
Seja qual for o tecido, uma coisa que nunca sai de moda é a fantasia baseada na criatividade e capacidade de observação do folião, como as do fisioterapeuta Marcello Ferreira, que esse ano tem feito sucesso no pré-carnaval do Rio saindo de kombi de ferro-velho.
“O carnaval de hoje é muito colorido, com adereços, meias e acessórios, o que também é legal. Mas gosto das fantasias temáticas. É o que eu curto”, disse ele, em entrevista ao g1 no início de fevereiro.
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Foliã do carnaval do Rio em 1942, em imagem feita por turista
Arquivo Pessoal/Rafael Cosme
Foliãs no Céu na Terra
Fernando Maia/Riotur
Foliões do Pérola da Guanabara
Gustavo Stephan/Riotur