Integrada à corrente paulista da bossa nova, artista deixa álbum de universo punk e disco feito com base em pesquisa de José Ramos Tinhorão. Maricenne Costa (1935 – 2025) morre aos 89 anos, em São Caetano do Sul (SP), onde foi velada na tarde deste domingo, 19 de janeiro
Ana Komel / Divulgação
♫ OBITUÁRIO
♪ “Sua voz tem cores, Maricenne. Não cale nunca essa voz colorida”, disse ninguém menos do que João Gilberto (1931 – 2019) para Maricenne Costa após ouvir a artista cantar no Hotel Cambridge, em São Paulo (SP). Era 1962 e a cantora paulista tinha somente quatro anos de carreira.
Às 23h15m da noite de ontem, sábado, a “voz colorida” que encantou João Gilberto se calou. Nascida em Cruzeiro (SP), pequena cidade do Vale do Paraíba, Maria Ignez Senne Costa (3 de dezembro de 1935 – 18 de janeiro de 2025) morreu aos 89 anos, em São Caetano do Sul (SP), após longa batalha contra a doença de Alzheimer.
A morte foi confirmada pela irmã da cantora, Elisabeth Sene-Costa, ao colunista do g1. O velório aconteceu na tarde deste domingo, 19 de janeiro.
Além de ter embevecido João Gilberto, de quem se tornou amiga, Maricenne Costa teve a primazia de lançar em disco um compositor carioca iniciante e ainda desconhecido chamado Chico Buarque. Sim, em 1964, Maricenne gravou single com Marcha para um dia de sol, primeira música de Chico a ganhar registro fonográfico.
Contudo, é injusto reduzir a carreira de Maricenne Costa – que na época assinava somente Maricene, sem o segundo n incorporado ao nome artístico a partir da década de 1980 – a esse honroso dado biográfico.
Maricenne Costa tornou-se cantora profissional ao vencer em abril de 1958 o concurso A voz de ouro do Brasil, promovido pelo grupo de mídia Diários Associados e transmitido pela TV Tupi. Até então, ela cantara somente em programa de calouro de emissoras de rádio da cidade natal e de municípios vizinhos.
Com a vitória no concurso, a cantora debutante ganhou projeção em todo o Brasil e iniciou a carreira fonográfica ainda naquele ano de 1958 com a gravação e edição de single com as músicas Quem sou eu (Dolores Duran e Ribamar) e O amor morre no olhar (Guerra Peixe e Jair Amorim).
Artista de gosto refinado e canto moderno, Maricenne nunca alcançou uma real popularidade, mas fez shows conceituados em São Paulo, como Estopim (1983), e tinha prestígio entre músicos do naipe do pianista César Camargo Mariano e do organista Walter Wanderley (1932 – 1986), com quem viajou para fazer shows nos Estados Unidos.
Integrada à corrente paulista da bossa nova, em conexão reforçada no último álbum da artista, Bossa.SP (2009), produzido pela artista com Thiago Marques Luiz, Maricenne Costa ficou sem gravar disco na década de 1970. O primeiro álbum da cantora foi lançado somente em 1980. Até porque a carreira de cantora foi prejudicada pelo forte envolvimento da artista com o teatro.
Situada entre o teatro e a música, a permanente inquietude artística da cantora a levou a um movimento inusitado em 1992, ano em que se conectou com o universo do punk paulistano em álbum, Correntes alternadas, em que regravou Garotos do subúrbio (Clemente Magalhães, 1982), hino do grupo Inocentes.
Sete anos depois, em outra mudança de rota, a cantora se voltou para o repertório gravado no início do século XX no alvorecer da indústria fonográfica do Brasil em álbum, Como tem passado! (1999), gravado com base em pesquisa feita pelo historiador musical José Ramos Tinhorão (1928 – 2021).
Em 2005, a cantora fez Movimento circular, álbum com músicas de Francis Hime, Gilberto Gil, Jorge Ben Jor e Moisés Santana, além da regravação da Marcha para um dia de sol com que lançara Chico Buarque sem repercussão.
Antes de sair de cena em decorrência do Alzheimer, Maricenne Costa usou a “voz colorida” para propagar repertório com os tons de um Brasil mais sofisticado que parece estar calado em algum lugar do passado.