A descida de Jesus ao inferno faz parte da tradição cristã, embora de forma não unânime, desde o segundo século. Jesus no inferno em obra atribuída a um aluno de Jheronimus Bosch, feita por volta de 1575
Domínio público
A descida de Jesus ao inferno faz parte da tradição cristã, embora de forma não unânime, desde o segundo século. De acordo com essa crença, após a morte por crucifixão e antes de sua ressurreição, ele teria ido a este lugar mítico e libertado os mortos que ali estariam.
Por este entendimento, anteriormente a isso todos os que havia morrido estavam nesse local. Somente após essa descida de Jesus é que houve a reorganização do espaço pós-vida para que apenas os maus fossem ao inferno.
Mas toda essa interpretação é cheia de camadas. Incorpora a tradição judaica, as mitologias grega e romana, textos bíblicos, uma oração de origem milenar — o credo repetido em missas e cultos cristãos — e escritos apócrifos. E carrega nuances inclusive sobre a definição de inferno.
A origem desta narrativa provavelmente remonta à segunda ou terceira geração dos seguidores de Jesus — aqueles que não o conheceram em vida, portanto. Segundo pesquisadores, os primeiros seguidores não se preocupavam com o pós-morte, pois acreditavam que a volta triunfal de Jesus para instituir o prometido Reino de Deus ocorreria ainda com eles vivos.
“A crença no pós-morte como algo individual, ir para o céu ou para o inferno, se tornou mais forte a partir do século 2º”, afirma à BBC News Brasil o teólogo e cientista da religião Marcelo da Silva Carneiro, pesquisador do cristianismo primitivo e professor na Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). “Isso aconteceu porque os primeiros cristãos, no século 1º, tinham a firme crença de que a volta de Jesus seria imediata e mundial, ou seja, eles nem chegariam a morrer.”
“Mas isso não aconteceu. As gerações foram passando e os cristãos precisaram ajustar seu discurso sobre o fim, senão cairiam em descrédito”, acrescenta ele. A solução foi desenvolver a crença sobre o céu e o inferno, como lugares para onde a pessoa iria após a morte.
O evangelho de Nicodemus
A mais detalhada e completa fonte dessa narrativa é um texto conhecido como Evangelho de Nicodemos, um texto apócrifo que leva esse nome porque supostamente teria sido redigido por um personagem contemporâneo de Jesus, o fariseu Nicodemus que o teria defendido no julgamento e se encarregado de sepultá-lo.
Sabe-se, contudo, que a redação do texto é posterior. No livro Evangelhos Apócrifos – Gregos e Latinos, uma edição traduzida e comentada pelo professor Frederico Lourenço, da Universidade de Coimbra, afirma-se que não é possível “datar com segurança” este documento, mas que provavelmente “ele foi composto entre os século 4º e 5º”.
Contudo, antes de merecer o registro, era uma história que circulava. “A origem [do relato] é incerta, mas tudo indica que o texto registra crenças comuns aos primeiros cristãos, de que Jesus teria libertado todos os mortos do inferno”, diz Carneiro.
E isto tem a ver com o judaísmo. “Essa crença de que os mortos ficavam no inferno, independentemente de ser como castigo ou não, vem do judaísmo antigo, que atribuía ao sheol o lugar dos mortos, um espaço de ataraxia, ou seja, inércia absoluta”, explica o professor. “E, depois, em contato com a cultura grega, associaram o conceito de sheol ao de hades, que depois foi traduzido como inferno.”
“A crença da descida de Jesus ao inferno é comum a todos os cristãos, porém a Igreja Católica assimilou mais profundamente por conta do apócrifo Evangelho de Nicodemos”, conta Carneiro, que é o autor de uma tradução do texto publicada no Brasil pela editora Paulus.
O relato, escrito do ponto de vista de quem estava no inferno, traz o episódio que teria ocorrido entre a morte e a ressurreição de Jesus: sua descida ao espaço para libertar aqueles que ali estavam.
“Aí vem uma série de interpretações. O que ele foi fazer lá é o grande dilema”, comenta à BBC News Brasil o teólogo e historiador Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Ele foi pregar para o arrependimento [daqueles]? Parece que não. Ele foi proclamar sua vitória sobre a morte, mostrando que aquele ambiente não pode prendê-lo, pois haverá sua ressurreição e a ressurreição de todos os que vêm? Esta segunda versão parece muito viável.”
Carneiro esclarece que “o texto evidencia que Jesus foi tirar os mortos que estavam naquele espaço de escuridão e ataraxia desde Adão [que, segundo o Gênesis da bíblia, teria sido o primeiro ser humano]”.
“O próprio Adão, inclusive, [segundo o apócrifo] fica muito feliz com a chegada de Jesus ao inferno, porque ele traz luz e vida”, pontua o teólogo. “Assim como os profetas e todas as demais pessoas que lá estão.”
Este é um aspecto crucial desta narrativa: nela, este lugar era o único destino pós-morte, por isso até mesmo as pessoas vistas como boas ali estavam. “Aparentemente, só a partir daí o inferno passa a ser o destino das pessoas ruins e que não creram em Jesus como Salvador”, contextualiza Carneiro.
“Eis o ponto importante para este grupo: quem ouvir essa mensagem depois de Jesus ter ressuscitado, caso caia no inferno, não sairá mais dele, pois agora Jesus está no céu”, completa.
Assim, o relato também funciona como uma espécie de marco fundador da dicotomia entre céu e inferno para os cristãos. E, claro, influenciou muito da cultura ocidental.
“Ficava a questão: e o que Jesus fez no Inferno? A resposta vem do Evangelho de Nicodemos: Jesus o esvaziou para todas as pessoas que morreram antes de ele ressuscitar”, comenta Carneiro. “A partir daí, o Inferno passa a ser o lugar de punição.”
“Em termos de recepção desse texto, temos de destacar a [obra-prima] Divina Comédia, de Dante [Alighieri, poeta que viveu entre 1265 e 1321]”, escreve Lourenço, ressaltando que a narrativa também se tornou “significante para a história da arte”.
Da tradição judaica ao credo cristão
Na bíblia hebraica, a palavra sheol aparece 65 vezes. Literalmente, significa sepultura, mas suas menções retratam um local entendido como a região dos mortos ou o mundo dos mortos.
Seria então o local destinado a receber toda a humanidade depois da vida, nesse entendimento antigo.
Quando esses escritos antigos foram traduzidos para o grego, sheol acabou se tornando hades — na mitologia grega, Hades é o deus do mundo inferior e dos mortos, equivalente ao Plutão dos romanos.
“Na Bíblia há diversos termos para se referir a esse lugar ou mansão dos mortos: Geena, Hades, infernos… Neste caso, inferno deve ser entendido no seu sentido literal: regiões inferiores da terra. E não como lugar de condenados”, afirma à BBC News Brasil a teóloga Adriana Barbosa Guimarães, pesquisadora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Assim, ela entende que a descida de Jesus à mansão dos mortos seja um testemunho de sua “solidariedade com o ser humano na sua vida e na sua morte”.
Essas camadas são necessárias para uma melhor compreensão sobre o pensamento daqueles primeiros cristãos e as terminologias por eles escolhidas. Na versão católica contemporânea do Credo dos Apóstolos, oração repetida em missas e cultos, diz-se que Jesus “foi crucificado, morto e sepultado; desceu à mansão dos mortos, ressuscitou ao terceiro dia, subiu aos céus”.
O Catecismo da Igreja Católica, documento que consolida a doutrina da denominação, explica em seu artigo 636 o que o credo quer dizer com “desceu à mansão dos mortos”. “[O trecho] confessa que Jesus morreu realmente e que, por ter morrido por nós, venceu a morte e o Diabo, que tem o poder da morte'”, esclarece.
Mansão dos mortos, portanto, acabou sendo a tradução conveniente para justificar o termo. Acredita-se que o Credo tenha surgido — ou, ao menos, uma versão embrionária do mesmo — pouco depois do ano 50. Foi a maneira, por tradição oral, que os primeiros cristãos tinham para rememorar os episódios que julgavam importantes da biografia de Jesus.
Vale ressaltar a versão latina da mesma oração, que diz “descendit ad ínferos”. O termo inferno, em latim “infernus”, é derivado de “inferos” — literalmente “lugar abaixo”. Etimologicamente, as palavras inferior e inferno têm a mesma origem.
Na bíblia
Se o apócrifo Evangelho de Nicodemos é a fonte mais completa sobre o episódio, é fato também que diversas passagens da bíblia indicam essa mesma crença da passagem de Jesus pelo inferno.
O teólogo Carneiro explica que isso se deu porque, mesmo sendo hoje um livro apócrifo, o Evangelho de Nicodemos “é diferente de muitos outros”, pois “ele cita diversas passagens dos evangelhos canonizados”.
“Por isso, se tornou menos questionável. E chegou a circular por vários séculos”, pontua.
“Acabou virando uma história meio que canônica. Entrou pela janela da bíblia canônica porque, mesmo de origem apócrifa, acaba sendo citado na bíblia”, avalia à BBC News Brasil o sociólogo Edin Sued Abumanssur, professor na PUC-SP.
Escrito por volta dos anos 80, ou seja, possivelmente antes mesmo dos evangelhos, o livro dos Atos dos Apóstolos registra uma profecia sobre Jesus que dizia que Deus não o abandonaria “na morada dos mortos”.
No Evangelho de Mateus há um trecho em que o próprio Jesus teria dito aos seus discípulos que “o Filho do Homem estará no seio da terra por três dias e três noites”.
Já a Primeira Epístola de Pedro traz duas citações que indicam a partilha dessa mesma crença. Diz a carta que Jesus “foi pregar até aos espíritos que se encontravam na prisão”. E que “até aos mortos foi anunciada a boa nova”.
Na Epístola de Paulo aos Efésios, um trecho diz: “Ele subiu! Que quer dizer isto, senão que ele também desceu até embaixo da terra? Aquele que desceu é também o que subiu mais alto que todos os céus, a fim de plenificar o universo”.
“A ideia desses trechos é afirmar que Jesus, depois que morreu e antes de ressuscitar, desceu ao inferno para pregar aos espíritos aprisionados”, contextualiza Abumanssur.
Mas há quem entenda que dizer que Jesus desceu à mansão dos mortos seja apenas uma maneira de indicar que ele, como qualquer ser humano, também experimentou a morte. Neste caso, a teologia permite diversas explicações.
Considerado um dos maiores teólogos do século 20, Karl Barth (1886-1968) costumava dizer que essa ideia de Jesus descendo ao inferno é “o centro do centro” da mensagem, por envolver o aspecto “mais humano possível”.
“E aí vem tudo aquilo: ele proclama que é o dono do céu e da terra, do lugar dos mortos, evangeliza [também lá]… É o aspecto da humanidade de Cristo”, concorda Moraes.
A teóloga Guimarães explica que “a descida à mansão dos mortos” deve ser entendida como “mais uma etapa dos atos salvíficos de Jesus, que abraçou totalmente a condição humana na vida e também na morte”.
“Toda a existência humana, desde a concepção até a sua morte foi assumida e tocada pela salvação que Deus oferece ao ser humano na pessoa de Jesus”, analisa.
Nesse sentido, Guimarães defende que essa descida seja compreendida como a experiência de Jesus ao encontro “dos seres humanos que já haviam passado pela morte e que aguardavam a salvação”.
Há nuances semânticas. “Depende da linha que a pessoa adota em relação ao inferno e ao pós-morte”, esclarece Carneiro. “Teólogos mais estritos tendem a considerar que o tempo entre a morte e a segunda vinda de Cristo, o juízo final, não terá nenhuma atividade e os mortos não foram ainda designados, nem para o céu, nem para o inferno.”
“Então, tanto o termo inferno quanto mansão dos mortos seriam uma questão semântica simbólica para significar sepultura”, complementa. “A outra linha adotou concepções mais imediatistas e vinculadas a crenças populares: céu e inferno já estão recebendo seus mortos.”
De acordo com o teólogo, “do ponto de vista prático, qualquer uma das formas está correta” na crença cristã.