{"id":161187,"date":"2025-04-14T07:31:20","date_gmt":"2025-04-14T10:31:20","guid":{"rendered":"https:\/\/bbc.jornalfloripa.com.br\/bbcbrasil\/161187"},"modified":"2025-04-14T07:31:20","modified_gmt":"2025-04-14T10:31:20","slug":"como-cancer-sequestra-o-cerebro-e-rouba-nossa-motivacao","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/bbc.jornalfloripa.com.br\/bbcbrasil\/161187","title":{"rendered":"Como c\u00e2ncer ‘sequestra’ o c\u00e9rebro e rouba nossa motiva\u00e7\u00e3o"},"content":{"rendered":"

Pesquisa descobriu que o c\u00e2ncer n\u00e3o apenas “desgasta” o c\u00e9rebro de forma geral \u2014 ele envia sinais inflamat\u00f3rios espec\u00edficos que o c\u00e9rebro detecta. Com isso, responde reduzindo rapidamente os n\u00edveis de dopamina, diminuindo a motiva\u00e7\u00e3o. Muitos pacientes com c\u00e2ncer em est\u00e1gio avan\u00e7ado caem em uma apatia profunda enquanto a doen\u00e7a devasta corpo e c\u00e9rebro
\nGetty Images
\nUma consequ\u00eancia cruel do c\u00e2ncer em est\u00e1gio avan\u00e7ado \u00e9 a apatia profunda que muitos pacientes experimentam ao perder o interesse por atividades antes muito apreciadas.
\nEsse sintoma faz parte de uma s\u00edndrome chamada caquexia, que afeta cerca de 80% dos pacientes com c\u00e2ncer em est\u00e1gio terminal, levando a uma perda severa de massa muscular e peso, deixando os pacientes extremamente magros, mesmo com nutri\u00e7\u00e3o adequada.
\nEssa perda de motiva\u00e7\u00e3o n\u00e3o apenas aprofunda o sofrimento dos pacientes, como tamb\u00e9m os isola da fam\u00edlia e dos amigos.
\nComo os pacientes t\u00eam dificuldade para se engajar em terapias exigentes que requerem esfor\u00e7o e persist\u00eancia, isso tamb\u00e9m sobrecarrega os familiares e complica o tratamento.
\nOs m\u00e9dicos geralmente assumem que, quando pacientes com c\u00e2ncer em est\u00e1gio avan\u00e7ado se desligam da vida, isso \u00e9 uma resposta psicol\u00f3gica inevit\u00e1vel \u00e0 deteriora\u00e7\u00e3o f\u00edsica.
\nMas e se a apatia n\u00e3o for apenas uma consequ\u00eancia do decl\u00ednio f\u00edsico, e sim uma parte integrante da pr\u00f3pria doen\u00e7a?
\nEm nossa pesquisa rec\u00e9m-publicada, meus colegas e eu descobrimos algo not\u00e1vel: o c\u00e2ncer n\u00e3o apenas consome o corpo \u2014 ele sequestra um circuito cerebral espec\u00edfico que controla a motiva\u00e7\u00e3o.
\nNossas descobertas, publicadas na revista Science, desafiam d\u00e9cadas de suposi\u00e7\u00f5es e sugerem que pode ser poss\u00edvel restaurar aquilo que muitos pacientes com c\u00e2ncer descrevem como a perda mais devastadora \u2014 a da vontade de se engajar com a vida.
\nO c\u00e2ncer pode causar um desgaste debilitante
\nGetty Images
\nSeparando a fadiga do decl\u00ednio f\u00edsico
\nPara desvendar o enigma da apatia na caquexia do c\u00e2ncer, precis\u00e1vamos tra\u00e7ar o caminho exato que a inflama\u00e7\u00e3o percorre no corpo e observar o c\u00e9rebro vivo enquanto a doen\u00e7a progride \u2014 algo imposs\u00edvel de fazer em seres humanos.
\nNo entanto, os neurocientistas possuem tecnologias avan\u00e7adas que tornam isso poss\u00edvel em camundongos.
\nA neuroci\u00eancia moderna nos oferece um arsenal poderoso de ferramentas para investigar como doen\u00e7as alteram a atividade cerebral em camundongos.
\nOs cientistas podem mapear c\u00e9rebros inteiros em n\u00edvel celular, acompanhar a atividade neural durante comportamentos e ativar ou desativar neur\u00f4nios com precis\u00e3o.
\nUsamos essas ferramentas em um camundongo modelo com caquexia induzida por c\u00e2ncer para estudar os efeitos da doen\u00e7a no c\u00e9rebro e na motiva\u00e7\u00e3o.
\nIdentificando o circuito da motiva\u00e7\u00e3o
\nIdentificamos uma pequena regi\u00e3o do c\u00e9rebro chamada \u00e1rea postrema, que atua como um detector de inflama\u00e7\u00e3o cerebral.
\n\u00c0 medida que um tumor cresce, ele libera citocinas \u2014 mol\u00e9culas que desencadeiam inflama\u00e7\u00e3o \u2014 na corrente sangu\u00ednea.
\nA \u00e1rea postrema n\u00e3o possui a t\u00edpica barreira hematoencef\u00e1lica que impede a entrada de toxinas, pat\u00f3genos e outras mol\u00e9culas do corpo, permitindo que ela monitore diretamente os sinais inflamat\u00f3rios circulantes.
\nQuando a \u00e1rea postrema detecta um aumento dessas mol\u00e9culas inflamat\u00f3rias, ela aciona uma cascata neural que atinge v\u00e1rias regi\u00f5es cerebrais, culminando na supress\u00e3o da libera\u00e7\u00e3o de dopamina no centro de motiva\u00e7\u00e3o do c\u00e9rebro \u2014 o chamado n\u00facleo accumbens.
\nEmbora frequentemente mal interpretada como um “qu\u00edmico do prazer”, a dopamina est\u00e1 mais associada ao impulso, ou \u00e0 disposi\u00e7\u00e3o de fazer esfor\u00e7o para obter recompensas: ela inclina a balan\u00e7a interna de custo-benef\u00edcio em dire\u00e7\u00e3o \u00e0 a\u00e7\u00e3o.
\nComo medimos o esfor\u00e7o nos camundongos
\nObservamos essa mudan\u00e7a diretamente com dois testes quantitativos, baseados em princ\u00edpios da economia comportamental para medir esfor\u00e7o.
\nNo primeiro, os camundongos precisavam inserir repetidamente o focinho em um compartimento de comida, com um n\u00famero crescente de tentativas exigidas para receber cada bolinha de ra\u00e7\u00e3o.
\nNo segundo teste, cruzavam uma ponte entre dois bebedouros, que iam se esvaziando com o uso, for\u00e7ando os animais a mudar de lado, como algu\u00e9m colhendo frutas at\u00e9 esgotar uma \u00e1rvore.
\n\u00c0 medida que o c\u00e2ncer avan\u00e7ava, os camundongos ainda buscavam recompensas f\u00e1ceis, mas rapidamente abandonavam tarefas que exigiam mais esfor\u00e7o.
\nAo mesmo tempo, vimos os n\u00edveis de dopamina ca\u00edrem em tempo real, espelhando precisamente a queda na disposi\u00e7\u00e3o dos animais de se esfor\u00e7arem por recompensas.
\nNossas descobertas sugerem que o c\u00e2ncer n\u00e3o est\u00e1 apenas “desgastando” o c\u00e9rebro de forma geral \u2014 ele envia sinais inflamat\u00f3rios espec\u00edficos que o c\u00e9rebro detecta.
\nO c\u00e9rebro, ent\u00e3o, responde reduzindo rapidamente os n\u00edveis de dopamina, diminuindo a motiva\u00e7\u00e3o.
\nIsso coincide com o que os pacientes relatam: “Tudo parece dif\u00edcil demais.”
\nPreta Gil fala sobre nova etapa do tratamento do c\u00e2ncer depois de alta hospitalar
\nRestaurando a motiva\u00e7\u00e3o em est\u00e1gios avan\u00e7ados da doen\u00e7a
\nTalvez o mais empolgante seja que encontramos v\u00e1rias formas de restaurar a motiva\u00e7\u00e3o em camundongos com caquexia por c\u00e2ncer \u2014 mesmo com o tumor ainda em crescimento.
\nPrimeiro, ao desligar geneticamente os neur\u00f4nios sens\u00edveis \u00e0 inflama\u00e7\u00e3o na \u00e1rea postrema, ou ao estimular diretamente os neur\u00f4nios para liberar dopamina, conseguimos restaurar a motiva\u00e7\u00e3o normal nos camundongos.
\nSegundo, descobrimos que administrar um medicamento que bloqueia uma citocina espec\u00edfica \u2014 de forma semelhante a tratamentos j\u00e1 aprovados pelo FDA (ag\u00eancia americana equivalente \u00e0 Anvisa) para artrite \u2014 tamb\u00e9m foi eficaz.
\nApesar de o rem\u00e9dio n\u00e3o reverter o desgaste f\u00edsico, ele restaurou a disposi\u00e7\u00e3o dos camundongos para buscar recompensas.
\nEmbora esses resultados se baseiem em modelos animais, sugerem uma possibilidade de tratamento para pessoas: ao direcionar esse circuito espec\u00edfico entre inflama\u00e7\u00e3o e dopamina, pode-se melhorar a qualidade de vida dos pacientes com c\u00e2ncer, mesmo quando a doen\u00e7a continua incur\u00e1vel.
\nA linha entre sintomas f\u00edsicos e psicol\u00f3gicos \u00e9 uma divis\u00e3o artificial.
\nO c\u00e2ncer ignora essa separa\u00e7\u00e3o, usando a inflama\u00e7\u00e3o para tomar controle dos circuitos que impulsionam a vontade de agir. Mas nossas descobertas sugerem que essas mensagens podem ser interceptadas \u2014 e os circuitos, restaurados.
\nTratamento contra o c\u00e2ncer pode exigir esfor\u00e7o imenso dos pacientes
\nGetty Images
\nRepensando a apatia nas doen\u00e7as
\nNossa descoberta tem implica\u00e7\u00f5es que v\u00e3o muito al\u00e9m do c\u00e2ncer.
\nA mol\u00e9cula inflamat\u00f3ria que provoca perda de motiva\u00e7\u00e3o no c\u00e2ncer tamb\u00e9m est\u00e1 envolvida em muitas outras condi\u00e7\u00f5es \u2014 desde doen\u00e7as autoimunes como artrite reumatoide at\u00e9 infec\u00e7\u00f5es cr\u00f4nicas e depress\u00e3o.
\nEsse mesmo circuito cerebral pode explicar a apatia debilitante que milh\u00f5es de pessoas com doen\u00e7as cr\u00f4nicas enfrentam.
\nA apatia desencadeada pela inflama\u00e7\u00e3o pode ter evolu\u00eddo originalmente como um mecanismo de prote\u00e7\u00e3o. Quando os primeiros humanos enfrentavam infec\u00e7\u00f5es agudas, reduzir a motiva\u00e7\u00e3o fazia sentido \u2014 economizava energia e direcionava recursos para a recupera\u00e7\u00e3o.
\nMas o que antes ajudava a sobreviver a doen\u00e7as de curto prazo, se torna prejudicial quando a inflama\u00e7\u00e3o persiste, como no c\u00e2ncer e em outras enfermidades. Em vez de ajudar na recupera\u00e7\u00e3o, a apatia prolongada aprofunda o sofrimento, piorando os desfechos e a qualidade de vida.
\nEmbora a aplica\u00e7\u00e3o dessas descobertas em terapias humanas exija mais pesquisa, elas revelam um alvo promissor de tratamento. Ao interceptar os sinais inflamat\u00f3rios ou modular circuitos cerebrais, os cientistas podem ser capazes de restaurar o impulso dos pacientes.
\nPara pacientes e fam\u00edlias que assistem \u00e0 motiva\u00e7\u00e3o desaparecer, essa possibilidade oferece algo poderoso: a esperan\u00e7a de que, mesmo com o avan\u00e7o da doen\u00e7a, a ess\u00eancia de quem somos possa ser recuperada.<\/div>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

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