
Cidade foi selecionada para pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde em parceria com Unesp, laboratório Astrazeneca, Universidade de Oxford, Fiocruz, entre outros. Doses foram aplicadas em maio e agosto de 2021 e resultados monitorados até o fim daquele ano. Botucatu, no interior de SP, fez vacinação em massa com a Oxford-AstraZeneca; veja a reportagem da época
A pacata Botucatu, cidade de 145 mil moradores no interior de São Paulo, ganhou destaque no combate à Covid-19 durante a pandemia, declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 11 de março de 2020. Conforme a doença foi evoluindo, começou uma “corrida” por uma forma de prevenção do vírus por meio de uma vacina, e o município foi cenário para um estudo inédito.
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Neste mês de março, a declaração da pandemia de Covid-19 completa cinco anos. Durante essa semana, o g1 publica uma série de reportagens sobre fatos marcantes da pandemia nas regiões da área de cobertura da TV TEM – entre elas, a vacinação em massa realizada em Botucatu, que teve um destaque importante para a imunização no país.
Várias pesquisas foram desenvolvidas e, em tempo recorde, vacinas foram criadas. A imunização contra o coronavírus começou oficialmente na Inglaterra, no dia 8 de dezembro de 2020, nove meses depois do início da pandemia. No Brasil, a vacinação começou depois de pouco mais de um mês, em 17 de janeiro de 2021, com a CoronaVac.
Quatro vacinas tiveram seu uso autorizado no país na época. Além da CoronaVac, foram liberadas a AstraZeneca, Pfizer e Janssen. Em abril de 2021, o Ministério da Saúde anunciou que Botucatu havia sido escolhida para um estudo inédito de vacinação em massa com doses da vacina AstraZeneca, que no país era produzida em parceria com a Fiocruz.
“O estudo ajudou muito, principalmente para entendermos melhor os efeitos adversos pós-vacinais no ‘mundo real’, o que acontecia, até então, de maneira mais controlada. Foi um estudo bastante importante naquele momento. Também é importante pontuar que o estudo foi feito durante a circulação das variantes gama e delta, e nós tivemos ali, no início, durante essas variantes que estavam circulando, essa vacina, que foi fundamental para proteção, mesmo contra a infecção, mas, principalmente, contra os casos mais graves”, afirma a secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, Ethel Maciel.
No estudo, realizado pela Unesp de Botucatu em parceria com a Universidade Oxford, laboratório AstraZeneca, Fiocruz, Ministério da Saúde, prefeitura, entre outros parceiros, foi feita a vacinação em massa da população adulta, de 18 a 60 anos, moradora da cidade.
Um esquema grandioso foi montado para vacinar esse público-alvo em poucos dias. A primeira dose foi aplicada em maio de 2021 e a segunda dose em agosto do mesmo ano. Toda a pesquisa custou R$ 11 milhões, que foram financiados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Vacinação em massa em Botucatu contra a Covid-19 foi feita no dia 16 de maio de 2021
Reprodução/TV TEM
Escolha de Botucatu
A ideia de realizar o estudo na cidade surgiu de uma iniciativa da própria prefeitura, em contato com o coordenador da pesquisa na Unesp de Botucatu, o médico infectologista e professor da Faculdade de Medicina Carlos Magno Fortaleza.
Na época, a cidade de Serrana (SP) já havia iniciado um estudo da vacinação da população com uso da CoronaVac e o então prefeito de Botucatu, Mário Pardini (PSDB), demonstrou o interesse de fazer algo semelhante no município.
Em entrevista ao g1, o professor comenta que a ideia começou a tomar forma a partir de uma conversa do prefeito com a reitoria da Unesp e que, naquele momento, eles não sabiam nem qual vacina poderia ser utilizada. Fortaleza lembra, de forma curiosa, que a possibilidade de usar a vacina da AstraZeneca surgiu de uma fake news.
O professor conta que a prefeitura recebeu a informação de que o laboratório poderia negociar a venda de doses da vacina diretamente para os municípios e, na tentativa de confirmar essa informação, que mais tarde foi esclarecida como um notícia falsa, o professor teve contato com pessoas que estavam pesquisando a vacina da AstraZeneca no Brasil que, ao apresentar a ideia da vacinação em massa, ficaram empolgadas com o estudo.
“Nenhum município, até aquele momento, tinha vacinado toda a sua população adulta de uma vez. Mesmo em Serrana, a ideia era diferente. Eles vacinavam um bairro e, aí, eles comparavam aquele bairro com os outros bairros da cidade. Eles ficavam vacinando bairro a bairro com a vacina CoronaVac”, destaca.
Mas a pesquisa precisava do aval do Ministério da Saúde, por meio do Comitê Nacional de Ética em Pesquisa. Diante disso, foi necessário mostrar que a cidade reunia os aspectos para realizar um estudo dessa grandeza.
“Botucatu tinha uma característica importante, que era um SUS muito robusto, uma capacidade rápida de vacinar, como nós mostramos na vacinação de febre amarela, em 2009, quando vacinamos toda a população em duas semanas. Nós mostramos também que tínhamos muitos laboratórios de biologia molecular. Então, se precisássemos ver que mudanças do vírus circulante estavam acontecendo a partir da análise genética, havia laboratórios de biologia molecular na medicina, na biologia, na veterinária e até na agronomia. Portanto, tínhamos a capacidade tecnológica, o Sistema Único de Saúde robusto e uma experiência de vacinar pessoas com muita rapidez.”
A partir do aval do Ministério da Saúde, o professor teve o prazo de apenas três dias para montar o projeto de vacinação em massa e análise dos resultados. Ele lembra que começou a escrever em uma quinta-feira e, no domingo de manhã, já estava em contato com os pesquisadores da Oxford, universidade parceira no estudo.
Fortaleza destaca ainda que, naquele momento, foi um estudo inédito que, posteriormente, chamou a atenção da comunidade científica.
“Depois de nós, vários fizeram estudos semelhantes ao nosso, muitos próximos ao nosso. Alguns colegas epidemiologistas entraram em contato, discutiram com a gente. E essa é a função da ciência. A ciência é democrática. Se alguém perguntar como é que eu quero fazer também, a gente fala. A gente mandou os detalhes metodológicos do nosso estudo e vários outros locais fizeram com outras vacinas.”
Botucatu (SP) fez vacinação em massa dos moradores da cidade com a Oxford/AstraZeneca
Gabriela Prado/TV TEM
Sistema eleitoral para vacinar em massa
Um dos desafios da vacinação em massa, além de toda a montagem da estrutura para aplicação das doses em um dia, era evitar a “invasão” de pessoas que não eram moradoras de Botucatu em um momento que essa faixa etária, de 18 a 60 anos, ainda nem era vacinada no restante do país.
Foi nesse contexto que surgiu uma ideia que partiu de um dos motoristas da prefeitura: usar o sistema eleitoral, como explica o professor.
“Se todas as pessoas votam em um dia só, por que não usar o sistema eleitoral para vacinar as pessoas, como é nas zonas eleitorais? Dessa forma, usamos um critério de dupla checagem. A pessoa tinha que ter o título em Botucatu e um comprovante de residência. Se ela não tivesse as duas coisas, ela não se vacinaria no primeiro dia, ela iria para um lugar de checagem, onde ela teria que provar que ela, de fato, morava em Botucatu.”
Além do uso na checagem da documentação, a Justiça Eleitoral foi parceira no cadastro de voluntários para ajudar na triagem dos documentos no dia de vacinação e também disponibilizou os locais de votação como postos de vacinação.
Mesmo com todo o cuidado para evitar a “invasão” que poderia atrapalhar o estudo, houve registro de aumento de procura por aluguel de residências e também da transferência do título de eleitor para Botucatu na época.
O advogado e publicitário Daniel Carvalho foi um dos moradores que participou do estudo. No dia da vacinação da primeira dose, em 16 de maio de 2021, ele chamou a atenção na fila para receber a vacina ao chegar fantasiado de jacaré. A fantasia foi uma forma irônica de protestar contra uma das falas do então presidente do país, Jair Bolsonaro (PL), sobre possíveis efeitos colaterais da vacina.
Morador de Botucatu toma vacina contra Covid fantasiado de jacaré
Arquivo pessoal
Hoje, cinco anos depois, Daniel lembra o quanto a cidade foi privilegiada por receber o estudo naquele momento da pandemia.
“Aquele momento fez de todos os moradores de Botucatu cidadãos extremamente privilegiados. De mais de 5.570 cidades do Brasil ou milhares de cidades de todo o planeta, os 145 mil cidadãos daqui de Botucatu foram eleitos para teste de vacina que acabaria com os efeitos da pandemia no território.”
Também moradora de Botucatu, Maria Aparecida Teixeira foi a primeira paciente diagnosticada com Covid-19 em todo o centro-oeste paulista. Depois de procurar atendimento três vezes com tosse, Maria foi diagnosticada com a doença em março de 2020 e precisou ficar 22 dias entubada.
“Nunca mais fui a mesma, eu não consigo andar direito, afetou minha audição, e o esquecimento então… Você fala uma coisa aqui, a hora que eu vou abrir a boca eu já esqueci do que eu tenho que falar. Porque essa doença, eu vou falar para você… Olha, só quem teve para saber o que eu estou falando”, conta.
Primeira paciente diagnosticada com Covid na região se emociona ao ver filha tomar vacina em Botucatu
Reprodução/TV TEM
Ela recebeu a vacina fora do estudo por ter 63 anos na época, mas se emocionou ao acompanhar a filha na vacinação em massa. Vanessa Teixeira tinha 41 anos e estava no grupo que foi vacinado durante o estudo. Maria havia tomado a primeira dose no programa de imunização do município dias antes, em 4 de maio de 2021.
“Pensa em uma alegria, um alívio. Fui tomar a vacina feliz da vida e olha que tenho pavor de injeção, mas fui. Hoje já tomei quatro doses e ainda falta o restante. Mas enfim, graças ao meu Senhor Jesus, estamos aqui. Podendo conversar, podendo dialogar. E incentivou outras pessoas a tomarem também”, afirma.
Ministro da Saúde aplica vacina contra Covid em moradora de Botucatu
Dados analisados
Ao todo foram aplicadas 77.668 doses, entre primeira e segunda, durante o estudo em quatro ações de vacinação em massa – nos dias 16 e 22 de maio para primeira dose e nos dias 8 e 14 agosto para segunda dose – além de ações pontuais para vacinar trabalhadores do comércio e estudantes da Unesp. Totalizando quase que 100% do público-alvo, que era de cerca de 80 mil pessoas.
Na cidade também foi realizada uma vacinação em massa para dose de reforço. Os resultados da vacinação foram monitorados até o fim de 2021, como estava previsto no projeto, e foram analisados dois aspectos principais: a efetividade da vacina contra o coronavírus e suas formas mais graves e a segurança da vacina em relação aos efeitos colaterais e adversos.
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“Nós temos, nesse estudo, duas conclusões. Uma sobre a proteção. Nós tivemos uma proteção de aproximadamente 75% contra Covid. Uma proteção próxima a 100% contra Covid grave na população, na verdade, não houve nenhuma morte na população do estudo, no período de acompanhamento originalmente proposto, que era o período até o final do ano de 2021. Houve um número muito pequeno de casos que necessitaram de cuidado, de assistência respiratória, mas foi uma eficácia global contra a doença grave acima de 90%.”
“Foi um grande sucesso, especialmente em um período em que a Covid ainda matava muito, exatamente como uma redução muito grande de mortes”, explica o professor.
O estudo também ajudou a comprovar a segurança da vacina: “Outro braço da pesquisa tinha a ver com a segurança. Então, nós acompanhamos a ida aos pontos-socorros, as internações dos hospitais, por quadros que poderiam ser efeitos colaterais da doença, quadros de trombose, quadros neurológicos, que poderiam ser efeitos colaterais da vacina. Então, nós acompanhamos seis semanas antes de cada dose da vacina e seis semanas depois. E nós percebemos que não houve um aumento de procura no pronto-socorro por esses efeitos colaterais graves”, completa Fortaleza.
Pesquisa em Botucatu foi aprovada pela Comissão Nacional de Ética
Divulgação
E tais resultados foram importantes para nortear o esquema de vacinação que estava sendo implantado no país naquele momento crítico da pandemia.
“Nós não tivemos neste estudo, nas pessoas vacinadas, nenhum efeito adverso grave, que a gente chama de pericardite, miocardite, alguma doença tromboembólica. Isso ajuda na tomada de decisão, porque diz que aquele esquema adotado pelo Ministério da Saúde, naquela dose adotada, no caso, eram duas doses, elas eram seguras e tinham uma eficácia”, destaca a secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, Ethel Maciel.
Fortaleza também reforça a importância do estudo, que envolveu a pasta da Saúde, inclusive com a presença do então ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, no primeiro dia de vacinação em massa, para a decisão do governo em investir no plano de imunização.
“Essa foi uma situação em que a universidade deu resposta à população, mostrando que era seguro fazer uma vacinação em massa, que era efetivo. Isso, certamente, foi algo muito importante para que o governo da época, relutante, aceitasse investir mais nas vacinas.”
O professor destaca ainda que foi gerada uma sensação de proteção na população, que pôde ser sentida inclusive na mudança de comportamento na busca por atendimento médico.
“A gente percebeu que teve um aumento de ida ao médico por pessoas por condições tranquilas, que elas deveriam ir ao médico, mas estavam evitando ir porque estavam com medo de pegar Covid.”
Ministro da Saúde aplica vacina contra Covid em moradora de Botucatu
Gabriela Prado/TV TEM
Imunização hoje
Em maio do ano passado, o laboratório AstraZeneca suspendeu a produção da vacina contra a Covid-19. No Brasil, o imunizante não estava mais sendo produzido também por falta de demanda do Ministério da Saúde.
“Quando nós tivemos a entrada da ômicron, ali no final de 2021 para 2022, tivemos uma mudança muito grande no vírus. Então, essas mutações que o vírus fez fizeram com que ele se distanciasse muito daquela cepa original de Wuhan, que foi utilizada para fazer as primeiras vacinas”, explica Ethiel.
Antes de ser descontinuada, mais de 153 milhões de doses da AstraZeneca foram aplicadas no Brasil. Porém a empresa optou por não fazer atualizações do imunizante diante das novas variantes que surgiram da Covid-19.
“No final de 2023, nós tivemos uma recomendação da Organização Mundial de Saúde de que as vacinas que não estavam sendo renovadas para a variante ômicron, que é, até hoje, a variante de maior circulação, com várias subvariantes, não fossem mais utilizadas. Com isso, o Ministério da Saúde, seguindo as recomendações da Organização Mundial de Saúde, descontinuou a compra da vacina por essa não atualização dessa variante de maior circulação”, completa a secretária.
Diante disso, o país passou a investir em vacinas que tivessem a ação combinada para combater as novas cepas do vírus, a chamada vacina bivalente, que é a disponível hoje no programa de imunização contra a Covid-19, além das doses pediátricas da vacina da Pfizer.
“Mais de 90% da população brasileira foram vacinadas com pelo menos duas doses. Então, isso faz com que os nossos casos de maior gravidade reduzam, mas a Covid ainda é uma doença que mata. Nós temos hoje no Ministério da Saúde uma coordenação específica para a Covid-19, Influenza e outros vírus respiratórios. Então, é uma coordenação que faz todas as análises do cenário internacional, do cenário nacional para modelar as recomendações.”
Atualmente, devem ser vacinados os grupos de maior risco, algo semelhante ao que acontece com a vacina contra a Influenza, como explica Ethiel.
“No Programa Nacional de Imunizações, as gestantes e os idosos, a vacina está incorporada no calendário. Os idosos, acima de 60 anos, devem tomar a vacina atualizada a cada seis meses; as gestantes, uma vez, durante a gestação. Nós temos alguns grupos especiais, como a população indígena, pessoas no sistema prisional, todos esses devem receber uma dose anual. Tem aqueles imuno-comprometidos, que são pessoas que têm alguma doença de base, pessoas vivendo com HIV, que fazem hemodiálise, pessoas que tomam altas doses de corticoide, esses devem também receber a vacina a cada seis meses.”
“O panorama da vacinação mudou muito a história natural da doença. Então, hoje nós temos as pessoas que adoecem de forma grave e que morrem. São aquelas que estão nesses grupos especiais que nós recomendamos a vacinação”, finaliza.
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